quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Proteção à intimidade e à vida privada a luz da Constituição Federal de 1988


Por Iranilda Ulisses Parente Queiroz

1. INTRODUÇÃO
 
A Constituição Federal de 1988 trouxe consigo uma renovada tábua de valores que, visando assegurar e promover, em primeiro plano, a dignidade da pessoa humana, colocou o aplicador do Direito diante da necessidade de se dedicar novamente ao estudo dos mais variados institutos jurídicos, a fim de adequá-los à ordem constitucional agora vigente.
O presente estudo visa, portanto, situar no plano constitucional vigente a proteção à intimidade e à vida privada do indivíduo, enquanto garantias fundamentais instituídas pela nova Carta Magna, com vistas à efetiva aplicação dessas garantias.

2. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
 
Dentre as garantias fundamentais do indivíduo, albergadas constitucionalmente no art. 5º, inc., da Magna Carta, encontram-se positivados os direitos à intimidade e à vida privada, os quais, como direitos da personalidade, podem ser vislumbrados como elementos da integridade moral de cada ser humano.
Partindo dessa premissa, necessário se faz proceder à distinção entre a proteção à intimidade e a proteção à vida privada.
Inicialmente, cumpre destacar que a própria Constituição reconhece que os institutos antes aludidos são autônomos e, portanto, tutelam situações diversas, ambos com vistas a cumprir a finalidade traçada pelo constituinte originário de defesa da cidadania e do Estado Democrático de Direito.
Da inteligência da norma constitucional, infere-se que a vida privada se distingue da vida íntima, ou seja, aquilo que a pessoa pensa, sente e deseja se refere à sua intimidade. Já os seus hábitos (modo de viver, de se comportar), seu relacionamento e, igualmente, aquilo que o sujeito possui, têm pertinência com a sua vida privada [1].

3. POSIÇÃO DOUTRINÁRIA 
 
Numa visão filosófica, Zavala de Gonzáles aborda o tema, aduzindo que “a intimidade constitui uma condição essencial do homem que lhe permite viver dentro de si mesmo e projetar-se no mundo exterior a partir dele mesmo, como único ser capaz de dar-se conta de si e de fazer de si o centro do universo” [2].
Já há algum tempo, a doutrina vem conceituando o direito à intimidade como aquele que busca defender as pessoas dos olhares alheios e da interferência na sua esfera íntima, por meio de espionagem e divulgação de fatos obtidos ilicitamente. O fundamento de tal garantia estaria pautado no direito de fazer e de não fazer [3] - é o “direito de ser deixado em paz”, vale dizer, de não ser importunado pela curiosidade ou pela indiscrição alheia, como defendido pelo magistrado americano Cooley, no ano de 1873 [4].
Entretanto, o início da discussão teórica a respeito do direito à intimidade começou em 1890 com a publicação do artigo de Warren e Brandeis, intitulado “The right of privacy”, cuja finalidade era dificultar a intromissão da imprensa na vida e na honra das pessoas [5]. De acordo com esses autores, o direito à intimidade consistiria “no direito de ser deixado só” [6]. Em 1952, esse conceito é enaltecido por Douglas, magistrado da Corte Suprema dos Estados Unidos, que considera o “direito à intimidade como princípio de toda a liberdade” [7].
No âmbito civilista, o direito à intimidade é tipificado como direito da personalidade, inerente, pois, ao próprio homem, tendo por objetivo resguardar a dignidade e integridade da pessoa humana, sendo, ainda, caracterizado como um direito subjetivo absoluto, uma vez que exercitável e oponível erga omnes.
Sendo um direito da personalidade, cumpre, por óbvio, investigar as suas origens, as quais remontam ao Constitucionalismo Social, inaugurado pelas Constituições Mexicana de 1917 e Alemã de 1919, pois, além de garantirem os chamados direitos de primeira geração [8], ambas eram marcadas por forte conotação social, já abrangendo os de segunda geração [9]. Nesse contexto histórico-jurídico, os direitos da personalidade foram elevados à categoria de garantias fundamentais, obrigatórias em toda e qualquer Carta Constitucional como forma de proteção e defesa das condições mínimas de sobrevivência do ser humano.
Para corroborar essa garantia, foram assinados diversos instrumentos de Direito Internacional, todos, como já mencionado, com a finalidade de resguardar os direitos da personalidade, dentre os quais o direito à intimidade. Apenas a título exemplificativo, poder-se-ia citar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a Convenção Européia dos Direitos do Homem (1950), o Pacto das Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos (1966), a Conferência Nórdica sobre o Direito à Intimidade (1967) e a Convenção Americana dos Direitos do Homem, assinada em San José da Costa Rica (1969).
Vistas, brevemente, as origens dos direitos da personalidade, bem como a importância que os mesmos representam dentro do Ordenamento Jurídico, cumpre trazer à baila os ensinamentos de Rubens Limonji França, para quem tais direitos são aqueles que recaem em certos atributos físicos, intelectuais ou morais do homem, com a finalidade de defender os valores inatos ao indivíduo [10].
No tocante ao direito à intimidade, cumpre aduzir que o mesmo revela a esfera recôndita do indivíduo; é o direito à liberdade pessoal de se manter isolado ou recolhido dentro do seu íntimo e da própria sociedade, o que implica afirmar que a esfera íntima do ser humano deve ser um mundo desconhecido das demais pessoas, a fim de que fique preservada a sua individualidade.
Quanto ao conceito de proteção à vida privada, Szaniawski descreve-o como “o poder determinante que todo indivíduo tem de assegurar a proteção de interesses extrapatrimoniais através de oposição a uma investigação na vida privada com a finalidade de assegurar a liberdade e a paz da vida pessoal e familiar” [11].
O novo Código Civil [12] determina a proteção da vida privada no seu artigo 21, in verbis: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
O ilustre doutrinador José Afonso da Silva, por sua vez, atribui uma dimensão maior ao direito à privacidade, de modo a fazer nele compreender todas as manifestações da esfera íntima, privada, e da personalidade [13].
Ainda no entendimento do professor José Afonso da Silva, a intimidade integra a esfera íntima da pessoa, os seus pensamentos, desejos e convicções, enquanto a vida privada significa o direito do indivíduo de ser e viver a própria vida, relacionando-se com quem bem entender. Relata que a Carta Magna, ao proteger a vida privada, se refere à vida interior, “como conjunto do modo de ser e viver, como direito de o indivíduo viver a própria vida” e não à vida exterior, que envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas [14].
Outro pensamento interessante é o manifestado por Sandra Lia Simon, para quem a vida privada e a intimidade são direitos individuais de primeira geração, contidos nas liberdades públicas. Derivados de concepção liberal, tais direitos passaram, mais tarde, a ser considerados não apenas no relacionamento do Estado com os indivíduos, mas também para afastar as ingerências no relacionamento entre os próprios indivíduos componentes da sociedade [15].
A proteção à vida privada corresponde a um direito da personalidade que ganhou considerações particulares a partir dos grandes avanços da ciência e da tecnologia, em uma nova era, na qual o poder significa conhecimento. Dessa forma, o direito à privacidade, como um dos direitos da personalidade, goza de total proteção, tendo sido objeto de detida análise por Fregadolli, que, a respeito dos mesmos, assim pontuou:
São inextinguíveis, salvo por morte da pessoa. Não podem ser adquiridos por outrem, não estando sujeitos a execução forçada. As pretensões e ações que se irradiam deles não prescrevem, nem precluem as exceções, (...) respeitam ao sujeito pelo simples e único fato de sua qualidade de pessoa, adquirida com o nascimento, continuando todos a ser-lhe inerentes durante toda a vida, mesmo contra a sua vontade, que não tem eficácia jurídica [16].
A cada dia, o direito à privacidade vem adquirindo maior relevo com a freqüente expansão das técnicas de comunicação. O rádio, a televisão, os computadores e a internet [17] deram origem a uma verdadeira revolução tecnológica, que impõe ao indivíduo uma coordenação automática e manipulada, independentemente de sua vontade. Como bem destaca Pontes de Miranda, “todos têm direito de manter-se em reserva, de velar a sua intimidade, de não deixar que lhes devassem a vida privada, de fechar o seu lar a curiosidade pública” [18].
O direito à privacidade há de ser resguardado e respeitado como uma conquista relevante que deve prevalecer apesar de todo o avanço tecnológico, porquanto é cada vez mais difícil garanti-lo tanto no ambiente de trabalho, como no doméstico. Como sabido, é cada vez mais freqüente a instalação de câmeras de segurança nos edifícios, nos shoppings e até nas escolas. No campo profissional, os executivos e presidentes de empresas têm acesso ao conteúdo dos correios eletrônicos de cada um de seus empregados e exercem sobre eles um controle que, em algumas situações, não deixa de violar a sua privacidade.

4. CONCLUSÃO
 
Concluindo, é possível afirmar que a intimidade corresponde ao conjunto de informações da vida pessoal do indivíduo, hábitos, vícios, segredos desconhecidos até mesmo da própria família, como por exemplo, as preferências sexuais, dentre outros, ao passo que a vida privada está assentada no que acontece nas relações familiares e com terceiros, como interferir em empréstimo feito junto aos seus familiares ou obter informações sobre o saldo bancário do empregado, devendo ser preservado no anonimato o que ali ocorre. Dito isto, constata-se que o direito à intimidade se situa em um círculo concêntrico menor que o direito à vida privada.
Finalmente, cumpre salientar que tanto a proteção à intimidade como à vida privada devem ter como fundamento maior a proteção à dignidade da pessoa humana, da qual emana toda e qualquer proteção ao indivíduo.

REFERÊNCIAS
 
BARROS, Alice Monteiro de. Proteção à intimidade do Empregado. São Paulo: LTr, 1997.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 05 out. 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br. Acesso em 23 de maio de 2006.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em http://www.planalto.gov.br. Acesso em 23 de maio de 2006.
FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 1.037.
FREGADOLLI, Luciana. O direito à intimidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 5, n. 19, abr/jun./1997.
MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratados de Direito Privado, Tomo VII, 4ª ed., Revista dos Tribunais, 1983.
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 3º ed. São Paulo: ATLAS, 2000.
________. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª ed. São Paulo: ATLAS, 2003.
MORENO HERNÁNDEZ, Moisés. El deber Del prófesional frente a la intimidad de su cliente, Revista da Faculdad de Derecho de México, tomo XLIII, enero-abril de 1993, ns. 187,188.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1992.
SIMÓN, Sandra Lia. A proteção constitucional da intimidade e da vida privada do empregado. São Paulo: LTr, 2000.
SOUZA, Camila Maria Brito de. Considerações a respeito do direito à privacidade. Revista do Curso de Direito da UNIFACS, Porto Alegre, v. 2, p. 151-161, 2002. (Coleção Acadêmica de Direito, n. 28)

Nenhum comentário:

Postar um comentário